quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Vacinação criteriosa


Depois das mais de 40 notificações de casos com suspeita de febre amarela silvestre – das quais 19 foram confirmadas e, dessas, dez terminaram em morte –, a doença deixou parte do país em estado de alerta.

Virologista Hermann Schatzmayr alerta para os problemas da vacinação contra a febre amarela em locais sem a doença e por pessoas que possam sofrer efeitos colaterais (foto: Gutemberg Brito/IOC)

Tanto que Bio-Manguinhos, principal fornecedor da vacina contra a doença, decidiu produzir, até o fim do ano, 30 milhões de doses do imunizante. Oito milhões serão entregues até o Carnaval, época em que deve aumentar o deslocamento de pessoas para áreas de risco, como o Centro-Oeste e Norte do país, e o oeste dos estados da Bahia, Minas Gerais e São Paulo.

Somente em Goiás, onde ocorreram as dez mortes confirmadas pela doença, estão sendo aplicadas 200 mil doses por dia. Contudo, para Hermann Schatzmayr, do Laboratório de Flavivírus do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), especialista na virologia de doenças como dengue e febre amarela, a vacinação deve ser criteriosa.

“A vacinação em lugares que não têm a doença é desnecessária. Não há razão de se vacinar em centros como Rio e São Paulo, exceto quando os residentes nessas localidades viajarem para as áreas de risco. Há pessoas se revacinando, tomando três doses da vacina em dez dias, e isso é um grande risco. A vacina é feita de um vírus vivo e pode causar efeitos colaterais, os quais podem até levar a processos de meningite e encefalite, que podem ser fatais. Indivíduos imunodeprimidos, portadores de câncer ou do vírus HIV, podem ter mais problemas que os outros”, disse Schatzmayr à Agência FAPESP.

Na quarta-feira (30/1), uma mulher de 43 anos, imunizada duas semanas antes, encontrava-se internada em coma no Hospital Geral de São Mateus, na zona leste de São Paulo, com suspeita de febre amarela vacinal (atualização: a mulher na manhã do dia 31. O laudo para confirmação da doença, feito pela Vigilância Epidemiológica, deve sair em 30 dias).

Schatzmayr ressalta que o imunizante contra a febre amarela é uma vacina viva atenuada, como a da pólio, o que significa que ela é produzida a partir de um vírus modificado mantido em laboratório, daí o perigo em se promover a vacinação em áreas em que não há a circulação do vírus. “A vacinação deve ser feita em pessoas que moram em áreas de risco ou que vão viajar para uma delas”, afirmou.

Segundo ele, o que está ocorrendo no momento no Brasil é um fenômeno natural da doença. “A febre amarela não é uma doença humana por definição, isto é, ela não precisa do homem para sobreviver. Ela infecta primatas, que são reservatórios naturais da doença. Quando encontramos esses animais mortos é um sinal de que aumentou a circulação do vírus na natureza e muito provavelmente um novo ciclo de febre amarela está começando”, explicou.

O virologista conta que a cada cinco ou oito anos há um aumento no número de casos de febre amarela em primatas e de mosquitos infectados. “Portanto, há uma maior tendência de pessoas que entram na mata sem vacinação serem infectadas, uma vez que há muito mais mosquitos portadores do vírus do que em outros tempos. Os casos atuais estão ocorrendo em pessoas que entraram nas áreas de risco sem vacinação”, disse.

Mudanças ecológicas

A febre amarela silvestre é transmitida de macacos para macacos pelos mosquitos sabethes e hemagogos, vetores que circulam na mata e tendem a viver nas copas das árvores. Por isso, transmitem a doença com muita eficiência aos primatas. E picam o homem eventualmente.

Em 1972, na mesma região de Goiás mais afetada atualmente, houve um surto da doença que logo se tornou epidemia, ao se espalhar por outros municípios. Na época, foram registrados mais de 300 casos e 90 pessoas morreram.

O problema, explica Schatzmayr, é que, com as mudanças ecológicas, os ciclos da doença, que antes eram constantes, passaram a ser imprevisíveis, devido à mudança de comportamento das populações. Por isso, o mosquito começa a atingir o homem também. O vírus é agressivo ao fígado e ao sistema renal e atinge o sistema circulatório, provocando hemorragias internas, como a gástrica. Dessa maneira, acaba provocando a falência múltipla dos órgãos e a morte.

O ciclo atual da doença podia ter sido previsto, na análise do pesquisador. “Há, todo ano, uma média de 30 casos registrados da doença. Nos últimos 12 anos tivemos 349 casos da doença, dos quais 161 pessoas morreram, o que significa cerca de 13 mortes ao ano. Houve uma baixa nos três últimos anos, quando ocorreram em média três mortes por ano. Essa baixa poderia nos fazer pensar que haveria um aumento em breve, seria um presságio de que os casos aumentariam”, observou.

O que não se deve achar, segundo o pesquisador, é que isso somente ocorre no Brasil. “Na América do Sul, por exemplo, Peru e Bolívia têm mais casos de febre amarela ao longo do ano do que aqui – o primeiro registra em torno de 600 casos anuais e o segundo em torno de 200. A Nigéria tem todo ano cerca de 5 mil casos. O Brasil exporta vacinas para a América Latina e África, em um total de mais de 30 países”, disse.

Schatzmayr observa que a situação atual e a falta de informação têm gerado uma confusão entre a febre amarela urbana e a silvestre. “O ciclo urbano começa quando um indivíduo chega à cidade infectado no ciclo silvestre e passa a infectar o mosquito aedes aegypti – o mesmo vetor da dengue – e esse começa a transmitir o vírus em seu ciclo de vida de dois meses. Felizmente, a febre amarela urbana não existe mais no Brasil, foi erradicada em 1942”, disse.

Washington Castilhos | Agência FAPESP

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