quarta-feira, 30 de janeiro de 2008
Sinalizador celular
A depleção de Mulan em células por meio da tecnologia de RNAi leva a dificuldades no tráfego de mitocôndrias através do citoesqueleto (microtúbulos em verde), resultando no acúmulo das organelas (em laranja) ao redor do núcleo
30/01/2008
Por Fábio de Castro
Agência FAPESP – A ubiquitina é uma proteína com funções fundamentais para a regulação de processos biológicos. Ela funciona como uma espécie de bandeira, indicando que algo deve acontecer ao substrato ao qual está ligada. Pode sinalizar, por exemplo, que as proteínas-alvo devem ser degradadas pelo proteassomo, uma espécie de “triturador” da célula.
Depois de mapear e estudar a função de genes que codificam as ubiquitina-ligases, componentes do sistema ubiquitina-proteassomo, uma equipe internacional coordenada por um cientista brasileiro mostrou que essas proteínas têm um papel ainda mais importante e diversificado do que se imaginava.
Além de descobrir que mais de 600 genes codificam ubiquitina-ligases no genoma humano, os pesquisadores utilizaram as informações do mapeamento para gerar novas ferramentas de genômica funcional.
Ao tentar demonstrar o potencial dessas ferramentas, fizeram ainda uma descoberta inesperada: uma nova ubiquitina-ligase que controla a dinâmica das mitocôndrias. O estudo foi publicado na semana passada na revista PLoS One.
A parceria envolveu cientistas do Brasil, Estados Unidos, Índia, Rússia e China. O autor principal do estudo é Cláudio Joazeiro, professor de biologia celular do Instituto de Pesquisa Scripps, na Califórnia, Estados Unidos, cujo laboratório trabalha com ubiquitina-ligases há quase dez anos.
“Elas nos interessam porque, além de conferir especificidade ao sistema, determinando quais proteínas serão marcadas ou não com ubiquitina, estão implicadas em diversas doenças”, disse Joazeiro à Agência FAPESP.
Entre as doenças relacionadas está a de Parkinson: dos poucos genes conhecidos cuja mutação está relacionada ao mal, um deles é codificador da ubiquitina-ligase. Em oncologia, algumas mutações eliminam a função de ubiquitina-ligases – como ocorre com o gene BRCA1, que acarreta o câncer de mama.
A descoberta da degradação regulada de proteínas pelo sistema ubiquitina-proteassomo foi feita no início da década de 1980 pelos israelenses Aaron Ciechanover e Avram Hershko Technion e pelo norte-americano Irwin Rose. A importância do processo para a regulação de processos biológicos – e a sua relevância para a compreensão de várias patologias – garantiu aos três o Prêmio Nobel de Química de 2004.
Mais surpresas à vista
No estudo, os autores combinaram informações de cinco bancos de dados públicos do genoma humano, eliminaram as repetições, gerando um superconjunto de proteínas entre as quais buscaram aquelas que exibiam características de ubiquitina-ligase.
“Essa notação genômica já nos trouxe várias informações importantes. Uma delas é que existem mais de 600 genes codificando ubiquitina-ligases. Isso indica que elas devem ser tão importantes quanto as proteínas quinases, mas estimamos que pouco mais de cem delas tenham sido estudadas”, disse Joazeiro.
Os pesquisadores fizeram, então, diversas análises de bioinformática com a finalidade de transformar os resultados em ferramentas para investigação das funções das ubiquitina-ligases, procurando determinar funções ainda não caracterizadas.
“Essas ferramentas de genômica funcional incluíarm a geração de coleções de cDNA e RNAi destinadas a interrogar a função de cada gene da família individualmente”, disse o pesquisador. O cDNA, ou DNA complementar, é o DNA sintetizado por uma molécula de RNA mensageiro em uma reação catalisada pela enzima transcriptase reversa. Quando inseridos em células, cDNAs podem levar ao aumento dos níveis da proteína codificada.
O RNAi, ou RNA de interferência, é uma nova técnica que permite inibir a ação de um gene escolhido. Por exemplo, o RNAi pode suprimir genes que causam tumores diminuindo o desenvolvimento de câncer.
De acordo com outro autor brasileiro do estudo, Mario Bengtson, pós-doutorando de Joazeiro no Instituto Scripps, “o uso sistemático dessas tecnologias irá inevitavelmente acelerar a compreensão das funções dessa importante classe de proteínas na regulação celular”.
“O estudo abre portas para muitas oportunidades de descobertas interessantes. O mais impressionante é que, embora conheçamos apenas uma fração desses 600 genes, sabemos que muitos estão envolvidos em doenças. Ou seja, provavelmente outras surpresas surgirão”, comentou Joazeiro.
Segundo o cientista, a via de ubiquitinação, que determina as proteínas a serem “marcadas”, é composta de três etapas, cada uma envolvendo uma enzima: E1 (enzima ativadora da ubiquitina), E2 (enzima conjugadora) e E3 (ubiquitina-ligase).
“No genoma humano existem apenas dois genes codificando a E1 e menos de 40 genes codificando a E2. Há alguns anos sabíamos que havia centenas deles codificando as E3. Avaliamos que entre 1% e 2% de todos os genes humanos são destinados à codificação de ubiquitina-ligases”, afirmou.
Mulan e a mitocôndria
Para demonstrar o potencial das ferramentas desenvolvidas, os autores do estudo incluíram um experimento cujo objetivo foi apontar quais ubiquitina-ligases controlam a morfologia e a função das mitocôndrias nas células.
“Esses processos de interação entre as ubiquitina-ligases e as mitocôndrias foram pouco estudados até agora, mas são importantes para doenças como a neurodegeneração”, explicou Joazeiro.
Durante o experimento, os cientistas descobriram uma nova ubiquitina-ligase, localizada nas próprias mitocôndrias, sugerindo que seu efeito na morfologia das organelas era direto. A proteína foi batizada como Mulan, a partir das iniciais de Mitochondrial Ubiquitin Ligase Activator of NF-kappaB.
“Em 30 anos de estudo do sistema ubiquitina-proteassomo, essa é apenas a segunda ubiquitina-ligase a ser descoberta associada à organela. Nós demonstramos que a Mulan controla a distribuição e a dinâmica das mitocôndrias, além de seu papel já reportado de ativadora da expressão gênica nuclear”, disse Joazeiro.
A descoberta, segundo o cientista, abre portas para que a ciência compreenda como essas organelas “conversam” com o núcleo celular e coordenam suas funções.
O artigo Genome-Wide and Functional Annotation of Human E3 Ubiquitin Ligases Identifies Mulan, a Mitochondrial E3 that Regulates the Organelle's Dynamics and Signaling, de Claudio Joazeiro e outros, pode ser lido em www.plosone.org.
Leia mais em:
Agência Fapesp,
genética,
genoma humano
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