quarta-feira, 5 de março de 2008

Divisor de águas

05/03/2008
Por Fábio de Castro

Agência FAPESP – Os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) se reúnem nesta quarta-feira (5/3) para decidir se as pesquisas com células-tronco embrionárias humanas são ou não são constitucionais. Pela complexidade, a questão gerou longas discussões e polêmicas acirradas que opuseram comunidade científica e setores da Igreja católica. Houve, entretanto, um consenso: trata-se do mais importante julgamento na história do STF.
Em março de 2005, as pesquisas com células-tronco embrionárias humanas foram aprovadas no Brasil no âmbito da Lei de Biossegurança. Em maio do mesmo ano, no entanto, o então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, entrou no STF com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) contra o artigo a respeito das pesquisas, sob a alegação de que estudos do gênero feriam “o direito de embriões”. O pedido foi acatado no fim de 2006.
“O julgamento é um divisor de águas para a sociedade brasileira. A decisão do STF vai colocar à prova o caráter laico do Estado. Além disso, todo o debate em torno da questão está sendo extremamente importante para aprimorar a percepção do público em relação à ciência”, disse Stevens Rehen, professor do Departamento de Anatomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC), à Agência FAPESP.
Para Rehen, a pouca informação dos brasileiros sobre ciência dificultou a discussão. “Foi um desafio informar a sociedade, de uma hora para outra, sobre um assunto de tamanha complexidade. Mas acredito que conseguimos argumentar com fundamento e discutir o que era necessário. Agora, cabe à Justiça decidir com prudência”, disse.
Segundo ele, é impossível avaliar o quanto a Adin atrasou as pesquisas brasileiras – o país não derivou até hoje nenhuma linhagem de células-tronco embrionárias. “O laboratório que coordeno, por exemplo, tem 17 pesquisadores e apenas dois estão em tempo integral nessa linha. Isso ocorre porque é arriscado investir em uma pesquisa que pode se tornar ilegal”, afirmou.
Rehen espera que o STF consiga avaliar o caso com serenidade, superando a argumentação emocional. “É inevitável que haja polarização em uma discussão que envolve dogmas religiosos. Esse é um embate natural desde Galileu. É importante preservar valores sociais e religiosos, mas esperamos que a decisão leve em conta os critérios próprios de uma ética laica”, disse. Alternativas científicas
Para o jurista Ives Gandra Martins, que elaborou para a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) um memorial dirigido aos ministros do STF, o debate teve nível elevado e não entrou em momento algum na questão religiosa.
“Não tratamos de nenhum problema religioso, mas apenas de ciência e direito. Do ponto de vista científico, não há como dizer quando começa a vida, mas consideramos que o zigoto, por evoluir necessariamente para a forma humana, é um ser humano em uma das formas de sua existência. E, para a Constituição, o direito à vida é inviolável”, disse o professor emérito da Universidade Mackenzie.
Partindo desse ponto de vista, Martins defende o uso de células-tronco adultas para pesquisas, com base no estudo, divulgado em junho de 2007, no qual pesquisadores do Japão e dos Estados Unidos criaram células-tronco pluripotentes induzidas a partir da pele de camundongos e que poderiam ser utilizadas para produzir todos os tipos de tecidos do corpo. Em novembro, duas equipes anunciaram o mesmo feito com células da pele humana.
“Esses avanços possibilitam a reprogramação de células sem necessidade do uso de embriões, sem problemas éticos nem de rejeição ou de geração de tumores. De modo geral, as células-tronco adultas têm apresentado bons resultados em testes clínicos e se apresentam como uma solução muito melhor”, afirmou. Célula embrionária necessária
Cientistas que trabalham com pesquisas voltadas para células-tronco adultas, no entanto, defendem a liberação dos estudos com células-tronco embrionárias. É o caso de Julio Cesar Voltarelli, coordenador da Unidade de Transplante de Medula Óssea (UTMO) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP).
“Não tenho disponibilidade para desenvolver pesquisas com células-tronco embrionárias no meu laboratório, mas tenho todo o interesse em testar essas células em ensaios clínicos. Só que, para isso, seria preciso que outros cientistas criassem essas linhagens”, afirmou.
Segundo Voltarelli, é falso o argumento de que células-tronco adultas podem fazer tudo o que fazem as embrionárias. “Eu trabalho com células adultas e posso afirmar com certeza que isso não é verdade. Sem células embrionárias não conseguimos nenhum resultado para a maioria das doenças degenerativas, nem para o diabetes mellitus de longa duração”, destacou.
Voltarelli considera que a discussão sobre a determinação do início da vida é relevante, mas tem que ser discutida de forma ampla. “A Igreja tem sua definição, mas existem outras. Há um grau de arbitrariedade, assim como no caso da definição de morte. O ponto central é que a sociedade civil não é obrigada a aceitar a definição da Igreja”, disse.
Segundo o professor da USP, é necessário ter coerência em relação ao marco legal a ser adotado para estabelecer o início da vida, assim como foi feito em relação à morte. “A Igreja consente na doação de órgãos quando um indivíduo tem morte cerebral. Está portanto reconhecendo que a vida está relacionada à função cerebral. Seria mais lógico admitir que esse é o ponto inicial da vida e não a formação do zigoto”, apontou.
Para Voltarelli, um dos principais argumentos a favor da Lei de Biossegurança é que ela permite apenas pesquisas com células-tronco derivadas de embriões inviáveis ou congelados há mais de três anos, que sobram nas clínicas de reprodução. “Esses embriões serão descartados se não forem usados para pesquisa. E isso já estava implícito quando se aprovou a fertilização in vitro”, disse à Agência FAPESP. Falta de legislação
Para o biólogo e sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador de projetos do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a falta de uma legislação adequada para a reprodução assistida é um ponto central da discussão.
“Um erro não justifica o outro. O fato de os direitos desses embriões não estarem sendo respeitados nesse momento não autoriza a sociedade a dispor deles como bem entender. A questão é se esses seres humanos são ou não detentores de direitos. Tudo aconteceu por falta de uma legislação clara”, afirmou.
Segundo Ribeiro Neto, a sociedade civil falhou ao não se mobilizar no momento certo para impedir que tantos embriões fossem congelados em clínicas de reprodução. “Deveria ter sido feito um acompanhamento dos casais nas clínicas, de modo que eles percebessem que estavam deixando os próprios filhos em uma vida suspensa, congelada”, disse.
Os defensores da Lei de Biossegurança, na opinião do coordenador do núcleo que reúne cientistas favoráveis à Adin, iludem a sociedade com promessas de cura para doenças degenerativas.
“Eles podem ter boas intenções, mas é uma tremenda desumanidade plantar uma esperança que vai se frustrar. Os resultados com células-tronco embrionárias são incipientes e não há nenhuma garantia de que elas chegarão a tratamentos efetivos. Os recursos destinados a essas pesquisas poderiam ir para linhas mais avançadas, com resultados mais promissores”, disse. Sociedade envolvida
Para Mayana Zatz, pró-reitora de Pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da universidade – um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP –, a aprovação das pesquisas com células-tronco embrionárias traria investimentos à área que, com isso, se confirmaria como esperança de cura para doenças neurológicas.
“Temos várias pesquisas em compasso de espera. Se a Lei de Biossegurança não for aprovada não vai mudar o destino dos embriões e o prejuízo será de todos. A principal conseqüência será tirar a esperança dos pacientes. É verdade que não podemos prometer tratamentos, mas se pudermos pesquisar poderemos ao menos garantir aos pacientes com doenças graves que somos capazes de fazer tudo o que seria possível em qualquer lugar do mundo”, disse.
De acordo com Mayana, dizer que só as células-tronco adultas dão resultados equivale a enganar a população. “As perspectivas nesse caso também são potenciais. Não há, como dizem, mais de 60 doenças sendo tratadas com células adultas, existem apenas tentativas terapêuticas”, afirmou.
A geneticista espera que o STF aprove a Lei de Biossegurança, legitimando as pesquisas e dando reconhecimento à comunidade científica. “O mais importante é que não se trata de uma discussão entre religiosos e cientistas. É um debate de toda a sociedade. Toda a discussão já ocorreu em 2004, quando a lei foi aprovada por 96% dos deputados. Agora, sabemos também que 75% da população católica aprova as pesquisas”, disse, mencionando pesquisa feita pelo Ibope e divulgada no domingo (2/3).
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